Gostava de ter nascido filho de um rei qualquer! Mas um rei bom! Ser varão para poder ser o mais importante e, mais tarde, rei!
O meu pai devia ter sido um rei pós-moderno, um tipo barrigudo, com bigode, bem-disposto e adorado pelo povo. A fotografia podia ser a do rei D. Carlos, mas a relação com o povo deveria ser apoteótica. Um reino rico, pessoas trabalhadoras, uma nação próspera e eu com a vida facilitada.
Devia ter nascido filho de um rei! Podia ser ignorante, burro, mal-formado,... no fundo, tudo me estava garantido. Mesmo que fosse considerado inapto, o meu irmão assumiria o trono e eu tinha tudo ao meu dispor na mesma! Príncipe consorte, estúpido, mas cheio de sorte!
Devia ter nascido filho de um rei para poder dizer “basta” e a expressão bastar-se a si mesma, e para poder dizer “não quero” implicando que ninguém mais quisesse!
Às vezes apetecia-me mesmo ser filho de um rei, mas depois caio na vida real e apercebo-me que talvez não tivesse piada nenhuma! Não ter que me preocupar com o meu futuro fazendo um real investimento em mim, não tinha graça nenhuma – o problema é que custa muito! Obviamente que os filhos dos reis podem investir em si, mas a garantia já existe e a “luta” está ganha! E apostar, “lutar” e investir custa muito... custa muito abdicar da vida moderna.
A sociedade de hoje não está feita para as pessoas se concentrarem. A vida é tida numa real superficialidade que assusta! Na classe média portuguesa (o grosso da nossa sociedade, se as coisas não piorarem) ninguém vive sem uma rede social online e todos os dias, várias vezes por dia, a frequenta; ninguém vive sem consultar a caixa de mail várias vezes por dia; ninguém vive sem 100 ou mais canais de televisão em casa; ninguém vive sem sei lá o quê – fala-se de gadgets que aspiram, cozinham, lavam, dão segurança, e até fazem chamadas telefónicas!
E no fundo ninguém aprofunda nada, nem as relações interpessoais... As consultas médicas são feitas com o médico a olhar para o computador, já não vamos à repartição de finanças porque fazemos tudo online, encomendamos o jantar por telefone, e pedimos à senhora para, à noite, nos vir buscar a roupa para passar a ferro. Amavelmente, no dia seguinte, a roupa é devolvida à noite.
Vivemos numa sociedade todos os dias diferente, todos os dias renovada e todos os dias confusa. E eu devia ter nascido filho de um rei! Talvez não frustrasse tanto! Quero absorver tudo à minha volta e disperso-me na real dimensão das coisas. Sou solicito e solicitável, tento ser diligente, nunca aprendi a dizer “não” e adoro trabalhar! Estúpido, quem é que gosta de trabalhar? E depois frustro! Frustro e não dou de mim o que devia ao que devia dar de mim! Confuso? Também eu!
Toda esta confusão se alicia a saudades: saudades de ver a neve, de ser puto e vestir um casaco amarelo, de ver o meu avô sem cabelos brancos, saudades de ir andar de bicicleta para a rua (primeiro obrigado, depois com gosto), saudades da minha casa antiga, saudades de quem já não está, saudades do Natal, saudades de tanta coisa, saudades de não ter computador em casa! Sim, no início da minha adolescência eu não tinha computador em casa. No 2.º ciclo ainda fiz trabalhos para entregar à mão em que colava imagens recortadas. E também comi muito doce “Casa de Mateus”, vi a “Rua Sésamo”, quis ser o “Capitão Planeta”, gravei o “Kissifur” em VHS, fui fã dos “Motorratos de Marte” e das “Tartarugas Ninja”, vi a primeira edição da “Carrinha Mágica”, vi muita televisão só com o “Canal 1” e o “Canal 2” da RTP, levei um dia inteiro a chegar a Vilar Formoso (saía de Almada às 6h da manhã, passava pelo mítico Infantado e chegava ao portão castanho de Vilar Formoso ao fim do dia, para jantar), eu até estive no último comício do Cavaco Silva quando se candidatou a primeiro-ministro a última vez – e a Alameda D. Afonse Henriques cheia... e eu cá atrás, puto, em cima de um atrelado de uma mota!
Tudo isto porque durante a adolescência da minha geração houve muitas mudanças sociais e um grande boom tecnológico. Talvez haja em todas as gerações, mas eu sinto a minha mudança e o meu boom, não quero saber dos outros! E fico frustrado!
De tanta frustração, agora, não me apetece escrever mais!!!